Não sou diferente da maioria dos jornalistas blogueiros, adeptos da tendência autoral e opinativa dos blogs. Seguidamente escrevo em primeira pessoa, como agora; me faço personagem dos eventos que narro; aponto os caminhos que me levam até as informações que posto; apresento meus pontos de vista.
Para falar do assunto que é a razão desta postagem, seguirei nessa linha, com pequenas viagens no passado recente da minha vida de estudante.
No último domingo, 19 de abril, eu e minha namorada, também estudante de jornalismo, caminhávamos pelo centro de Chapecó, no final da tarde. Nunca senti tanta falta de uma câmera fotográfica ou de uma filmadora como naquele momento. A imagem, em palavras, foi mais ou menos a seguinte: Um índio em trajes, entre 40 e 50 anos de idade, traços fortes, cabelos compridos, sentado em um banco da praça, tapando os ouvidos com as mãos, visivelmente perturbado com os ruídos do ambiente. Ao fundo, a imponente catedral católica e uma multidão de chapecoenses trepados nos carros e correndo pelas ruas, comemorando a classificação do time de futebol da cidade para a final do campeonato catarinense e, alguns, ao mesmo tempo, a conquista do campeonato gaúcho pelo Internacional.
Perdi a foto, mas dificilmente esquecerei aquela cena. Outros quatro índios mais jovens e uma índia da idade do primeiro estavam sentados há poucos metros de distância. Eram músicos e artesãos. Ao lado dos seus produtos, expostos no chão da praça, havia flautas andinas e um pequeno sistema de som com caixas e microfones. Logo notamos que não eram Kaingans (povos indígenas que habitam o Brasil meridional sul e que, em Chapecó, são vistos pelas ruas em situação miserável de vida). Nos aproximamos e ouvimos um dialeto que não identificamos. Curiosos, perguntamos de onde eram. Equador, respondeu a índia com forte sotaque espanhol. Já estavam há alguns dias em Chapecó.
Enquanto os homens do grupo tocam, cantam e dançam, numa performance que junta um bom público ao redor, a mulher comercializa os diversos produtos de artesanato. Graças aos torcedores barulhentos, a música tinha sido substituída por aquela poluição sonora. Além de perder a foto, não pude ver a apresentação, que tinha sido interrompida. Aproveitamos para apreciar o artesanato e trocar algumas palavras com os simpáticos e atenciosos equatorianos. Só no caminho de casa lembramos que era Dia do Índio. Na segunda-feira, minha namorada passou na rua ao lado e, atraída pela música, foi até a praça conferir. Ficou encantada.
“Encanto” é uma boa palavra para expressar minha admiração pelas culturas indígenas. A imagem que tenho dos índios é a defendida por Darcy Ribeiro: uma etnia de fundamental importância à formação do povo latino-americano; e não aquela por José de Alencar em “O Guarani“: o caricato “super-homem das selvas” Peri.
Mas quem melhor apresenta a entia indígena – em toda a sua diversidade existente no continente americano – é a própria, pela arte, pelas formas de organização social e econômica, pela resistência.
Voltemos a mais um episódio recente da minha vida de estudante, desta vez em sala de aula. O professor de jornalismo econômico passava conteúdo de teoria econômica, mais especificamente sobre estrutura de mercado. Sempre que a proposta era pensar alternativas econômicas para um mercado em equilíbrio, me ocorria exemplos reais como as missões jesuíticas, a recém aprovada Constituição da Bolívia, e o Movimento Zapatista do México. O que todos tem em comum? O protagonismo indígena.
É do último, o Enlace Zapatista, que pretendo falar aqui. Aliás, quem vai falar não sou eu, é o principal líder do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o Subcomandante Marcos, que assim vê o modelo capitalista:
“A estranha alquimia da globalização dos de cima conseguiu a mundialização de um novo dogma: liberação da humanidade é igual à liberação dos mercados… E, como os deuses anteriores, o mercado não caminha com racionalidades de números, estatísticas, leis de oferta e procura, cálculos financeiros. Não, o novo deus tem passo de morte e destruição, de guerra. Apesar disso, nunca irá reconhecer que está destruindo, mas sim que reparte, democraticamente, uma homogeneidade com um vaivém de identidades limitadas: comprador/vendedor. Tudo e, sobretudo, todos os que não podem ou não querem ser uma coisa ou outra, no compasso estridente e frenético do mercado são os outros.”
A citação acima está no texto “O que é ser zapatista“, do jornalista, sociólogo e educador Guga Dorea, atualmente pesquisador dos princípios zapatistas no projeto Xojobil. Este e outro texto do autor, intitulado “Os zapatistas e a rede virtual de conexões“, estão publicados no Correio da Cidadania, site recomendado por mim na lista de links do blog.
Segundo o artigo da Wikipédia, “o EZLN é um grupo indígena não-violento com sede em Chiapas, o estado mais pobre do México. Incorpora tecnologias modernas como telefones via satélite e Internet como uma maneira de obter a sustentação local e estrangeira. Consideram-se parte do largo movimento de antiglobalização.”
O aspecto da glogalização combatido é o neoliberalismo econômico. Quanto a aproximação das pessoas pelas novas possibilidades de comunicação, que é outra característica atribuída à globalização, o movimento defende a criação de uma rede global de comunicação, formada por diversas forças, sem sobreposição de nenhuma. A essência da causa Zapatista é muito bem colocada pelo Subcomandante Marcos, nestas palavras concedidas à revista Le Monde:
“Na atual globalização o mundo está se tornando quadrado e estão atribuindo cantos às minorias indóceis. No entanto, surpresa. O mundo é redondo, e uma característica da redondeza é não ter cantos. Queremos que não existam nunca mais cantos onde se possa desfazer dos indígenas, da gente que incomoda, para escondê-la como se esconde o lixo para que ninguém veja”.
A economia implantada pelos zapatistas nas terras que controlam, no sul e sudeste do México, chamadas Juntas de Bom Governo, é baseada na subsistência, na partilha da terra e da colheita e na autonomia. Visto a importância que tem a terra para a liberdade de um povo, que outro modelo poderia ser mais solidário e justo que este? Se a ciência econômica se ocupa do estudo do melhor aproveitamento dos recursos, que são escassos, para atender com eficiência às necessidades humanas, o que é uma economia equilibrada?
Voltemos mais uma vez à minha sala de aula, desta vez na disciplina de jornalismo político. Ao tratar dos princípios da democracia, o professor apresentou o conceito de Democracia Direta, que é a forma de organização social em que todos os cidadãos participam nos processos de decisão, diretamente. A Democracia Indireta é a que temos no Brasil e em praticamente todas as democracias contemporâneas, onde os cidadãos escolhem representantes para tomar as decisões.
Assim como o equilíbrio de mercado é para a ciência econômica, a Democracia Direta é, para a ciência política, o modelo ideal. Mais uma vez, o Movimento Zapatista serve como exemplo de Democracia Direta efetivamente exercida.
É por acreditar na legitimidade da causa zapatista que apóio as palavras de Guga Dorea e as reproduzo aqui:
“[…] convido você agora a embarcar nessa viagem de pensarmos a realidade zapatista como uma disparadora de reflexões sobre nossos comportamentos e conceitos sobre a política e as relações sociais. […] Apesar da distância geográfica, como criar vínculos existenciais com o que se passa por lá? Como os zapatistas concebem, por exemplo, o ser igual e diferente na sociedade contemporânea? Como fazer política e viver a partir da proposição “caminhar perguntando”? O que é, nesse sentido, o ato de escrever sobre o “zapatismo”? Os zapatistas são apenas um “eles” passíveis de “nossa” ajuda e solidariedade humanitária? Ou os zapatistas “somos nós”? Marcos sempre afirmou em seus comunicados que “não sou ‘eu’ e sim ‘nós’, os mortos e os vivos que lutaram e lutam nesses mais de 500 anos de injustiça, conflitos e tentativas de estabelecer diálogos com os governantes e a sociedade civil”. Marcos, nessa perspectiva, é por si só “vários”. Ele, enfim, “somos todos nós”. Vamos construir, juntos, o que é o ser zapatista. Caminhando e perguntando.”
Vejo o mundo com olhos zapatistas.
Tiago Franz – NeoIluminismo
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